A moda precisa ouvir algumas duras verdades e isso pode ser mais “chique-foda-cool” do que você imagina.
É bom saber que temos problemas para resolver juntos.
A “bolha da moda” não gosta de quem a critica. Os profissionais que produzem lindos designs, imagens incríveis, makes bombásticos e orbitam a vida de celebridades - o povo “cool” - gostam de falar sobre coisas bonitas. Todas as dificuldades do mundo ao seu redor são invisíveis, uma vez que seu look está lindamente fotografado em um editorial. O dia-a-dia sem dinheiro, sem viagens internacionais, economizando no ar condicionado (se você não for herdeiro, claro) são esquecidos assim que influencers com engajamento milionário lhe notam e pedem um look bapho para 'la grande entrée' em um evento de lista VIP disputada. Há uma lenda contada por Dana Thomas no livro Gods and Kings onde John Galliano passa uma noite sem teto, dormindo na rua abraçado a rolos de tecidos caríssimos. No caso dele, a obstinação pelo talento deu certo. Mas essa história romantizada é raríssima exceção - mesmo em Londres.
Essa reatividade da moda em falar sobre seus problemas estruturais não vem de hoje e nem é privilégio inglês ou brasileiro. A discussão sobre os problemas do sistema de moda, quando acontece, tem cara de coisa chata. Em uma sala de cadeiras desconfortáveis e baratas, pessoas 'inteligentes' se reúnem. Com estética burocrática e conservadora, que geralmente envolve a política e a academia, a juventude não se engaja e o momento passa despercebido. A mídia de moda, por sua vez, está mais preocupada em bater as metas de engajamento dos anunciantes e falta espaço para discussões que dificilmente vão gerar comentários entusiasmados - principalmente porque a audiência em si vai precisar pensar, e isso dá mais trabalho do que gerar like em imagens deslumbrantes. A tentativa existe, fato, mas qualquer iniciativa voltada para essas discussões mais estruturais são soterradas pelo interesse pelas peles perfeitas, bundas esculturais e looks caríssimos. Nós queremos ver peles perfeitas, bundas esculturais e looks caríssimos, sempre. Só seria legal termos mais espaço para discussões estruturais sobre o sistema, se quisermos sobreviver como mercado competitivo globalmente e não apenas sermos consumidores de sonhos.
Nesse momento, você pode pensar: 'Mas a Moda tem discutido tanto sobre diversidade e sustentabilidade'. Certo. São pautas importantes, que geram engajamento e interesse de marketing (por diversos motivos complexos não discutíveis neste texto). Mas quando foi, porém, a última vez que você viu a Moda Brasileira discutindo o fato de as indústrias de matéria-prima e confecção estarem desaparecendo? Ou o fato de não haver qualquer tipo de suporte para novos profissionais sustentarem seus negócios? Ou o fato de a moda brasileira não conseguir competir com marcas de luxo internacionais?
O alívio é que grandes movimentos de mudança acontecem diante de grandes problemas.
Pelo menos na Inglaterra, uma plataforma, apoiada por diversos atores do sistema de moda europeu e americano, começou a trazer duras verdades sobre o sistema de moda, mas de uma forma que engaja quem interessa: as pessoas da moda.
Enquanto estudava design na Central Saint Martins, a ucraniana Olya Kuryshchuk percebeu que os estudantes não tinham exposição suficiente para mostrar seus talentos criativos nem orientação adequada sobre como ingressar na indústria após a graduação. Em 2012, ela fundou a 1 Granary como projeto estudantil, e a revista foi publicada em 2013 com o apoio da Comme des Garçons.
Cinco anos depois, a revista se transformou em uma rede de apoio global para estudantes formados na Central Saint Martins e no Royal College of Art em Londres, Parsons em Nova York e na Royal Academy of Fine Arts em Antuérpia. Após o lançamento de sua primeira edição, Kuryshchuk fundou o Showroom 1 Granary, onde mais de 60 designers foram representados durante seu primeiro ano, criou um portfólio de parceiros para promover talentos de design globalmente e desenvolveu um programa de eventos em Londres e Nova York, visando fornecer aos designers emergentes conhecimento da indústria e orientação sobre desenvolvimento de carreira.
Nos últimos tempos, a 1 Granary tem batido nos problemas do sistema de moda e aproveitou a London Fashion Week para lançar posts chamados 'Pensamentos 1 Granary'. Como eu mesma comentei em um dos fios de discussão, os problemas no Brasil são semelhantes, mas ainda piores, uma vez que o suporte a novas marcas e negócios é ainda menor.
“Por que a moda apenas dá suporte a designers?”
“Esta indústria não pode sobreviver apenas com um bom design, então por que os estilistas são os únicos papéis que nutrimos e apoiamos? Olhe para os esquemas de apoio à moda, bolsas de estudo ou até mesmo os requisitos para vistos de talento; todos se concentram no talento de estilo, que são então responsabilizados pelos desafios que nossa indústria enfrenta. Uma crise climática? Ensine os designers sobre sustentabilidade. Uma economia da moda turbulenta? Adicione um curso de negócios por cima. Mas os estilistas não podem carregar esta indústria sozinhos. Da produção ao marketing e vendas, há inúmeros papéis responsáveis por algumas das inovações mais empolgantes em nossa indústria. A Semana da Moda poderia, de alguma forma, destacar esses talentos e ressaltar a importância do trabalho em equipe? Isso requer mais do que ter todo o ateliê dando uma volta após o show, mas o impacto poderia ser massivo. No final do dia, o design pode ser o coração da nossa indústria, mas isso não significa que ele possa vencer por si só”.
“Moda odeia falar sobre dinheiro (e fracasso).”
“Os designers muitas vezes se sentem frágeis (ou autoconscientes) demais para discutir abertamente sua realidade financeira – parece arriscado falar sobre não receber pagamento. Mas, com a imprensa da moda focando em tendências de estilo e celebridades nas primeiras filas, não há muitas oportunidades para avaliar para onde o mercado está indo e como gerenciar uma marca independente dentro dele.
O comércio eletrônico global está reduzindo os pedidos para designers independentes, os orçamentos para novos talentos dos compradores estão desaparecendo, e os principais players estão cancelando depósitos… Parece que investir pesadamente em marcas jovens e emergentes foi uma estratégia de compra que finalmente está chegando ao fim.
Mas, em Londres, a maioria dos designers interpreta esse problema em toda a indústria como um sinal de derrota pessoal. Eles foram educados para tratar uns aos outros como concorrência e não estão acostumados a compartilhar informações sobre vendas ou avisar uns aos outros sobre clientes que sempre pagam tarde.
A Semana de Moda poderia oferecer um check-in sazonal? Um momento para se reunir e entender para onde o mercado está indo, em vez de cada um contribuir para uma ilusão que não serve a ninguém?”
“Você não consegue levar uma marca apenas pela estética.”
“Não são apenas os vestidos que precisam ser desenhados, os métodos de trabalho também. Muitas marcas trabalham de uma maneira que falta pensamento criativo porque não são incentivadas a inovar seus negócios além da estética. Em Londres, trabalhar com moda é enquadrado como um projeto de paixão artística. Você deve fazer isso pelo amor à cultura e se sacrificar em sua busca. Mas o que perdemos quando falamos apenas sobre inovação por meio de roupas? Há tantas áreas do nosso campo que precisam de atenção – têxtil, produção, negócios... Como isso poderia se tornar parte da Semana de Moda de Londres? Afinal, não podemos abrir novas portas com chaves velhas”.
Esse movimento de repensar o sistema de moda nacional precisa ser coletivo.
Projetos independentes, ONGs discutindo interesses segmentados, reclamações nas redes sociais. Tudo isso é importante, mas sem o real envolvimento do governo, faculdades, semanas de moda, imprensa, indústria, celebridades e, principalmente, grandes negócios, não haverá mudança significativa. Se não houver um acordo entre todos os atores do sistema para melhorá-lo, não funcionará. Se cada um continuar tentando resolver apenas o seu próprio problema, a situação não mudará. O sistema de moda é um coletivo de trocas, negociações e objetivos comuns. Se todos não estiverem engajados, estaremos apenas mantendo movimentos superficiais, que podem parecer resolver problemas, mas que, na realidade, pelos números, não resolvem nada na estrutura.
Eu sempre bato na tecla que sem compreender novas tecnologias e como elas modificam o fluxo do sistema de moda, dificilmente podemos criar estratégias de impacto real. Então, se você é estudante, trabalha em alguma empresa, se faz parte de instituições públicas ou privadas, se colabora com alguma plataforma de mídia ou tem uma audiência engajada para aprender e discutir sobre o tema, manda uma mensagem para oi@globalmacrotrends.com.br . Vamos conversar e pensar em coisas juntos.
Você está pronto para o chamado? 😉
Além de ser um fonte de inspiração criativa para design, a 1 Granary está fazendo um trabalho fundamental para melhorar o Sistema de Moda. Vale conhecer mais: 1 GRANARY
O CURSO
Uma das maneiras de conseguir inovar nos negócios é compreender novas ferramentas de tecnologia. Se você também acredita que moda não é apenas design de roupas e que saber sustentar uma marca é fundamental, conheça mais sobre MODA e TECNOLOGIA no GMT.
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O PODCAST
O conceito de 'Monocultura da Mente' da filósofa indiana Vandana Shiva discute a dificuldade de pessoas em se relacionarem com assuntos e perspectivas fora de sua área de conhecimento confortável. Diversificar assuntos para fora do seu tema de trabalho, seu conhecimento empírico, é essencial para desenvolver o famoso 'pensamento abstrato'. Por isso, quando trabalhamos com arte, moda, beleza, cultura, precisamos interagir com assuntos que aparentemente fogem do nosso círculo. No último episódio do nosso podcast, falamos sobre 'O FUTURO DO AMOR'. Parafilias, ficção científica, Muro de Berlim parecem longe do mundo da moda, mas constituem um mesmo sistema de construção simbólica e comportamento social que constrói novas estéticas. Venha viajar conosco.
Continue a conversa sobre CULTURA e TECNOLOGIA com o nosso podcast !
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