Pierpaolo Piccioli está de saída da… Mayhoola.
O sistema de moda global é tão complexo que Valentino e Balmain são marcas árabes.
Se você acompanha o mundo da moda, deve ter percebido que o cargo de direção criativa virou um tipo de dança das cadeiras. Tim Blanks já explicou que a única certeza que você tem quando está no hype da moda é que você vai cair. “One day you are in, the next day you are out.” O troca-troca já se intensifica há mais de 10 anos, mas depois da pandemia parece que os prazos para diretores criativos darem resultados encurtaram.
Em dezembro de 2023, a esperançosa crítica de moda inglesa Sarah Mower desabafou:
"A contratação e demissão de diretores criativos e suas equipes — em questão de poucas temporadas — alcançou um nível sem precedentes do que só posso chamar de crueldade."
Para compreender o que está acontecendo, é inevitável ter consciência sobre as mudanças estruturais no sistema de moda e beleza mundial. Não apenas no mercado de luxo, mas em todo o mundo dos negócios.
O que aconteceu com a cultura no mundo?
Hoje, nós vivemos dois sistemas culturais distintos: Cultura de Território e Cultura Desterritorializada. A cultura de território é aquela que conhecemos através das fronteiras geográficas. A desterritorializada surge com o mundo digital e ainda está estabelecendo seus protocolos.
A importância da tecnologia digital no mundo começa a crescer nos moldes atuais com o investimento militar no Vale do Silício ainda na Segunda Guerra Mundial. Mas, vamos pular algumas décadas e chegar logo à entrada da internet na casa de um número significativo de pessoas por volta do ano 2000 e na grande virada de paradigma trazida pelo encontro dos aplicativos de celular com as redes sociais na década de 2010. Com o crescimento do digital houve uma reestruturação do sistema de criação de valor simbólico na sociedade. Antes, todo o valor era relacionado ao físico; depois, o digital passou a comercializar o intangível. Nesse momento, um produto extremamente valioso vira ativo no mercado: os nossos dados. A economia de dados, em muito pouco tempo, leva novas empresas de tecnologia ao topo das empresas mais valiosas do mundo, desbancando as principais companhias de petróleo que dominavam a lista desde 1950. Essa troca do topo do ranking de petróleo por tecnologia digital vai ser importante para entender a demissão do Pierpaolo, prometo. O dinheiro trocou de mão, e com o investimento em energias renováveis não dependentes do petróleo, carvão e gás, avançando, o dinheiro árabe precisou se mexer.
Para saber mais sobre Cultura de Território e Cultura Desterritorializada, assista à aula aberta aqui.
Mas, quem é Mayhoola?
Atual proprietária da Valentino, Hugo Boss e Balmain, a Mayhoola é uma holding de investimentos incorporada sob as leis do Estado do Catar e é gerida e propriedade da sua família real. Na página da Mayhoola, há pouca informação, a não ser que eles agem sob as leis do estado do país. O sistema jurídico do Catar é uma mistura única de lei islâmica, lei otomana, direito civil e comum europeu. A Constituição, em vigor desde 2005, estabelece o Catar como um estado árabe soberano e independente com o Islã como sua religião e o árabe como sua língua oficial.
Do petróleo à moda
A década de 2010 foi a década da “democratização” das tecnologias digitais e 2012 foi um ano de alta esplendorosa do petróleo. Com caixa cheio e muitas ameaças políticas relacionadas às estratégias de substituição do “ouro negro”, o mundo árabe começou inteligentemente a diversificar. A Mayhoola adquiriu a Valentino em julho de 2012 por 850 milhões de euros e a Balmain em junho de 2016 por 485 milhões de euros, de acordo com o Crunchbase. O mercado de luxo é um caminho compreensível, uma vez que grande parte dos seus consumidores é o mundo da riqueza árabe. Um universo tão particular que nem passa nas redes sociais dos pobres mortais.
2012 também viu uma das mais antigas casas de moda francesas passar para as mãos dos magnatas do petróleo. Se viva, Madame Vionnet dificilmente acreditaria ao ver a magnata do Cazaquistão, Goga Ashkenazi, comprar sua marca e se auto proclamar presidente e diretora criativa da Vionnet. A socialite e empresária Goga é a fundadora e CEO do MunaiGaz Engineering Group, um conglomerado cazaque de gás, petróleo e mineração de ouro. O sonho de ser estilista de Goga não durou, e a brincadeira perdeu a graça. Ano passado (2023), a Vionnet mudou de mãos, mas continua no setor do petróleo: foi adquirida pela ChimHeraes Investment Holding e pela empresa de investimentos Chimera Abu Dhabi.
O Brasil não passou despercebido, e como comentei no artigo anterior, em 2018, a IMM, fundo árabe, comprou 50,1% da SPFW. Em julho do ano passado (2023), a Kering, o conglomerado francês que detém marcas como Gucci, Saint Laurent, Bottega Veneta, Balenciaga, Alexander McQueen e Brioni, adquiriu 30% da Valentino, com uma promessa de negociação de que os árabes também entrariam como investidores da Kering estreitando ainda mais o poder árabe nas maisons tradicionais.
As marcas de moda viraram fetiche de bilionários?
Hoje a casa mais antiga da moda francesa, a Lanvin, que começou sua vida em 1889 vendendo chapéus, é de propriedade da Fosun. É intrigante ver a descrição da Lanvin Fashion Group como “uma firma de luxo chinesa proprietária das marcas Lanvin, Wolford e Sergio Rossi”. A Fosun é um conglomerado tão diversificado e complexo que não dá para aprofundar aqui, no entanto, eu recomendo dar uma olhada e perceber que claro, eles estão no ramo da tecnologia. A história mais relevante sobre a Lanvin para nosso texto, no entanto, é anterior à compra pela Fosun em 2018.
Em 2015 o querido da imprensa de moda Alber Elbaz foi demitido depois de 14 anos na Lanvin. O fato aconteceu logo depois de Raf Simons anunciar sua renúncia da Dior. Diferente de Raf, o desligamento de Elbaz foi "decisão da acionista majoritária da empresa: Shaw-Lan Wang”. O mundo europeu da moda estava indignado. Jack Lang, o ex-ministro da cultura francês, proclamou: "O talento não é descartável e nosso país deve se orgulhar do grande Alber Elbaz. Ele é um dos nossos tesouros nacionais. Ele é um ícone e uma fonte de orgulho para nós. Devemos a ele nosso apoio inabalável, nosso respeito e nosso afeto."
Wang ignorou tanto os apelos dos políticos franceses quanto dos funcionários que choravam a demissão de Elbaz. Mas, como aparece no artigo publicado na Vogue UK na época, nada era surpresa. “Madame Wang, como ela se refere a si mesma, raramente concede entrevistas ou responde a perguntas da mídia. Em uma exceção, uma entrevista com o Financial Times em 2012, ela relembrou como gostava de encontrar seus amigos famosos - atores, estrelas de kung fu - em privado, em vez de frequentar o circuito de festas da moda”. "Alber e meu diretor vão às festas. Eu não," ela disse. "Não gosto dessas pessoas ou dessas festas. Não sou uma pessoa do jet set."
Em 2001, Madame Wang adquiriu a Lanvin da L'Oréal. Ela disse que comprou a marca porque "Tenho uma amiga em Hong Kong e ela se veste de Lanvin há mais de 30 anos. Pensei, 'Ela ficaria muito orgulhosa se eu fosse a dona." Ela contratou Elbaz, que havia trabalhado anteriormente na Yves Saint Laurent, depois que ele a ligou e pediu para encontrá-la em Paris. Sobre a entrevista, ela disse: "Ele me mostrou seu livro de imprensa. O primeiro desfile de moda, ele chamou de 'Homenagem a Yves Saint Laurent.' Bom, pensei. Ele sabe respeitar."
Em um discurso feito apenas 5 dias depois de sua demissão, em um evento de premiação pelo seu talento, Alber Elbaz desabafou:
"Nós, designers, começamos como costureiros com sonhos, intuições e sentimentos... E agora temos que nos tornar criadores de imagens, garantindo que fique bom nas fotos... a extravagância é a nova tendência." Em contraste, ele disse, "Eu prefiro sussurrar."
Ainda dá para sussurar?
Esse é um grande exemplo sobre o novo sistema de moda. Existe uma entrega real (vendas de produtos físicos) e uma entrega virtual (audiência e aquisição de informação digital). A audiência hoje é mais valorizada. O engajamento por uma imagem nas redes é capaz de milagres consumistas, como valorizar tanto um produto digitalmente que seu objeto material não importa. Ao comprar o hype, a qualidade pode ser sacrificada sem grandes convulsões. Com uma audiência se sentindo empoderada por usar o seu produto, você pode diminuir a qualidade e aumentar o preço de “loja”. Eureka! Se o diretor criativo for sedutor e bem engajado com seu público, defendendo as causas certas, ai de quem levantar a suspeita de que o produto em si talvez tenha virado uma farsa hiperfaturada.
Hoje, cai quem não tem volume nas redes, quem não aumenta a audiência. Muita gente da moda torce o nariz para os desfiles de Maria Grazia, mas a Dior está entre as top 10 das marcas mais populares nas redes. Enquanto isso, se você procurar a lista das marcas mais lucrativas ou mais populares dos últimos anos, a Valentino não é mencionada. Pierpaolo pode ser o cara mais legal do mundo e um designer brilhante, no entanto, não é isso que o sistema premia no momento. Como afirmou François-Henri Pinault, CEO da Kering, o objetivo é "expand our footprint". (PS = Lembrando que empresas de moda, assim como drogarias são hoje principalmente empresas de dados.)
De tesouro nacional a asset de mercado
Jack Lang disse que Alber Elbaz era um tesouro nacional francês. Atualmente, no entanto, os diretores criativos parecem mais assets de mercado.
“Asset” é um termo em inglês que significa “ativo”. No contexto financeiro, um ativo refere-se a qualquer recurso de valor que uma pessoa ou entidade possui ou controla com a expectativa de que ele proporcionará benefício econômico futuro.
Não é a entrada árabe que transforma o luxo europeu em ativo de mercado financeiro, são os próprios europeus, mas com a globalização dos investimentos, uma grande modificação acontece: a moda deixa de ser uma construção simbólica com objetivos nacionais e passa a ser vista como uma operação "lucrativa ou não lucrativa" para seus acionistas. Ponto final. Não importam os valores que o novo estilista traz consigo; o que importa é se está gerando audiência, engajamento, trending topic e, obviamente, se isso converte em dividendos.
Rachid Mohamed Rachid, um empresário egípcio com experiências anteriores na Coca-Cola e no chá Lipton, por exemplo, ocupa o cargo de CEO e tem papel significativo nas operações da empresa Mayhoola, atuando como presidente da Valentino e da Balmain. Ou seja, os empreendimentos se tornaram tão uniformes que um profissional de refrigerante popular tem a qualificação necessária para gerir marcas de produtos de 6 dígitos. No novo sistema de negócios, tudo é asset. O que pode surpreender é que esse movimento não se resume às grandes corporações, mas, com novas ferramentas como redes sociais e blockchain, micro detalhes da vida podem ser negociados como assets de mercado.
Se no passado o “mercado” do sistema de moda e beleza era uma feira ou uma loja em rua nobre (como a Avenue Montaigne de Vionnet), hoje quem dita as regras é o Stock & Exchange. Na filosofia desse novo sistema, a ideia de nação até atrapalha, pois acaba interferindo demais nos negócios. O século XX viveu a necessidade de consolidar suas fronteiras, no século XXI o lema que corre é “companies over countries”, como afirmava Mark Zuckerberg nos primórdios do Facebook. Em tempos de busca pelas origens e as ancestralidades, parece até incoerente essa expansão do livre mercado, no entanto, como afirmou um jornalista da Band, “dinheiro não tem pátria”. Porém, nem sempre foi assim.
Orgulho Nacional
O século XX foi o momento de consolidação da nossa ideia atual de país. Através das guerras, as fronteiras se definiram em consenso entre as nações ricas do mundo. Nem sempre você pôde reivindicar a sua brasilidade. A maioria dos indígenas ainda não acha essa ideia de estado nacional muito inteligente.
Parece estranho, mas ainda no século XIX, o território francês não tinha uma língua comum. Cada pequena comunidade anexada ao império mantinha seus costumes locais, incluindo língua e vestimenta. É apenas com o alvorecer da modernidade e, ao seu reboque, a ideia de nação que a política investiu na ideia de uma cultura hegemônica para criar coesão popular e fortalecer um objetivo comum: a defesa de suas fronteiras.
Na base da ideia da modernidade está o conceito de expansão de território (“expand the footprint”). Duas frentes são as mais eficientes para chegar ao resultado: militar e cultural. A ação militar parece mais incômoda, ensanguentada e visivelmente violenta. Ainda funciona, principalmente quando é usada para justificar os nacionalismos extremos pelas ameaças de ataque externo. No entanto, sem dúvida, a estratégia cultural é mais sedutora e vibrante. O vestuário nesse caso sempre teve um papel fundamental para a autoestima de nações, principalmente a francesa. Quando foram ocupados pela Alemanha na Segunda Guerra, a resistência das mulheres francesas foi invejável. Sem poderem comprar tecidos para seus vestidos elegantes, costurados em casa ou em ateliês de bairro, investiram nos chapéus com a mensagem: “podem tirar o que quiserem, mas a nossa elegância é inalienável”. Os donos das grandes casas sempre foram entusiastas do luxo e da riqueza, não podemos vê-los como altruístas do capital certamente. Não podem ser canonizados, mas certamente podem receber a honra ao mérito no quesito compromisso de ajudar a construir a soberania nacional.
Em um tempo que investe na individualidade, o dinheiro passa a ser o único tema comum a todos dentro de um país.
Os estilistas que deram nome às grandes Maisons atuais eram seus donos. Além de criar uma coleção, uma proposta de sonho, era ainda necessário resguardar seu nome e ser reconhecido por seu país. Ser um diretor criativo hoje é muito diferente. Sim, existe o artista, os casos geniais, mas muitos não sobrevivem ao sistema. Sem relação oficial com a reputação da empresa que leva o seu nome, o que na maioria das vezes se tem é uma autoestima complicada e um emprego.
O funcionário exemplar
Na mesma medida que a moda é sedutora, ela é cruel. Um dia você trabalha nos bastidores, no dia seguinte, tem uma McQueen nas costas. Dá errado. Como tudo pode dar. Nesse momento, os sorrisos se estreitam e você se pergunta se não deveria ter ficado onde estava. Quanto mais você cresce nos conglomerados, mais precisa respeitar as regras. Como percebeu Shaw-Lan Wang, Alber Elbaz sabia respeitar. E esse foi um dos motivos que ela o contratou.
Ser um diretor criativo de sucesso pode parecer um lugar de deslumbre, de liberdade, mas pelo que vemos, está longe disso. Alçados a celebridades, é fácil esquecer que na verdade, você é um funcionário. Muito bem remunerado, mas que pode ser demitido a qualquer momento. E muitas vezes com a demissão, vão embora todas as regalias e simpatias do mercado. Caso você não seja Stella McCartney, dá medo sair da linha. Histórias como McQueen, Galliano e Marc Jacobs são exemplos.
Como sobreviver? É interessante pensar que apesar da moda sempre ovacionar os outsiders, os rebeldes, na verdade quem se mantém no cargo de direção criativa são os funcionários do mês. Não que o seu esforço vá te segurar. Há algo mágico quando um recém-nomeado consegue dar check em todos os quesitos necessários. Aconteceu com Demna, com Alessandro, mas nada é para sempre. O sistema muda, as entregas mudam e com isso os assets também precisam girar.
CHECKLIST DO FUNCIONÁRIO DO MÊS
Faça vender: O design é fundamental, mas o engajamento pop é mais importante. Quem soube entender o sistema perfeitamente foi Demna e Virgil.
Faça viralizar: Nessa categoria, Galliano garantiu seu posto com o último desfile. Mesmo sendo uma pessoa cancelada por natureza, ele sabe entregar o drama, seja na vida pessoal, seja na arte.
Se relacione com celebridades: Olivier ganha fácil o primeiro lugar.
Seja bem quisto pela imprensa: Raf Simons e JW Anderson estão no pódio.
Não gere problemas e seja brother do seu chefe (seja ele quem for): Nesse quesito, Nicolas Ghesquière is a movie star.
Represente uma causa: Maria Grazia está ON.
A moda vai além das passarelas
Para criar um pensamento de moda e beleza estruturado, consistente, você precisa conhecer as bases e fluxos do sistema. Se relacionar não apenas com assuntos destinados a consumidores de moda, mas ter uma compreensão sobre outros assuntos que tangenciam as movimentações do mercado.
Antropologia, economia, política, sociologia, psicologia, tecnologia e tantas outras áreas de estudo são fundamentais para quem trabalha com negócios de moda, beleza e cultura. Saber pensar o sistema eleva seu conhecimento para além da última trend do momento. Saber planejar, estruturar, transformar requer conhecimento diversificado e, muitas vezes, de campos inesperados.
A reflexão que fica é: Será que ainda podemos
chamar a Valentino de uma casa romana?
APRENDA COMO SE AGENCIAR NO SISTEMA DE MODA E BELEZA CONHECENDO SEUS SEGREDOS
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